sexta-feira, 27 de julho de 2012

Curtas de objectos e papel

Sob o título Noites Especiais de Pequenas Formas a Tarumba apresenta três espectáculos de teatro de objectos e papel, sob a égide do cinema: “Rio, rio, rio…”, “Divas’ Haiku” e “Teatro Noir” (não necessariamente por esta ordem).

À semelhança do que aconteceu no ano passado, a Tarumba desafiou três criadores a apresentarem novas produções no festival FIMFA e dois meses depois, face ao êxito alcançado no festival, voltam a ser apresentadas.

Assim, dirigi-me ao CAMA – Centro de Artes da Marioneta, esperando uma deambulação por várias salas para ver os três espectáculos. E as minhas expectativas não foram goradas.

Quando chego, percebo que alguns espectadores já assistiram a uma das peças (daí acima mencionar que a ordem de apresentação não segue obrigatoriamente a ordem pela qual eu assisti aos espectáculos), o que me deixou intrigado.

Comecei a noite com “Rio, rio, rio…” de Luís Hipólito um vertiginoso delírio à volta da diva brasileira, Carmen Miranda. É um rapaz em pijama que nos recebe, de pulseiras berrantes, douradas, ao som de uma música que não reconhecemos logo... tem um ar alucinado, que aos poucos se transforma num sorriso. Estaremos num sonho? Afinal, o que acontece quando as luzes da ribalta se apagam? Simples, as frutas, brilhos, plumas e objectos dos famosos turbantes da actriz/cantora ganham vida. Assistimos a um delicioso strip de uma banana, a um tomate que concorre ao lugar de maçã num filme sobre Adão e Eva, ao espectáculo de um pássaro num "circo ridículo". E tanto faz se as referências à banana de Wharol ou à Apple estão descontextualizadas temporalmente... é um sonho, um delírio e arranca-nos um sorriso.
A viagem segue e com meia dúzia de objectos como flores com molas, brincos de plástico e colares o rapaz de pijama transforma-se numa calorosa e feliz Carmen Miranda vestida de baiana. E quase no final, uma simples manipulação de um vestido dourado pendurado num cabide transporta-nos para uma bonita coreografia em que facilmente imaginamos a bela Carmen (sem dúvida o mais simples e bem conseguido momento do espectáculo. Bravo!).
Luís Hipólito opta por uma presença muito marcada no espectáculo e é da sua relação com os objectos que o espectáculo é apresentado.

Saímos da sala e dois espectadores são convidados a atravessar a rua. Eu fui um dos visados. Fiquei curioso. E enquanto os outros espectadores são presenteados com pipocas, eu fui assistir a "Divas' Haiku". Entramos numa biblioteca escura e a um ritmo alucinante, vão aparecendo nas prateleiras imagens de divas dos anos dourados do cinema americano e objectos que facilmente relacionamos com a diva em questão, delicadamente iluminados por pequenos projectores. E se algumas referências / objectos são mais fáceis de perceber (o vestido branco de Marilyn Monroe em “O pecado mora ao lado” ou a cartola de Marlene Dietrich) outras serão menos óbvias mas igualmente deliciosas (as luvas negras de Rita Hayworth em “Gilda”, os diamantes de Elizabeth Taylor ou um colar de pérolas no qual um carro se despenha em homenagem a Grace Kelly). Ainda uma nota muito positiva ao vídeo que acompanha toda a apresentação de pouco mais de três minutos (talvez o espectáculo mais pequeno a que já assisti).
Joaquim René opta por uma presença discreta, sem relevância para o enredo, limitando-se a ser o lampionista do espectáculo.
No final ficamos com uma verdadeira constelação de Divas a iluminar-nos a noite.

Saímos de sorriso no rosto e voltamos a encaminhar-nos para a primeira sala (verdade seja dita que ainda tivemos tempo de comer umas pipocas enquanto outros dois espectadores foram ver o pequeno espectáculo de J. René. Os que ficaram à espera trocaram olhares cúmplices.).

Regressamos à primeira sala, ligeiramente modificada. É a vez de “Teatro Noir” de André Murraças. É um verdadeiro teatro de papel, feito de cartolina preta que nos recebe (com telões de papel, cenários de papel, personagens de papel). Em traços largos, é uma história de amor, traição e morte com toque de film noir. A mulher fatal, o suspense, a história policial, os crimes, as perseguições, o preto e branco (com um ou outro toque de vermelho), os becos, o fumo, a traição. Está lá tudo. Em papel.
femme fatale é aqui a personificação de várias mulheres, uma colagem interessante de olhos, bocas, narizes, cabelos de várias actrizes de Hollywood.
Sendo todo o espectáculo deveras interessante, alguns momentos estão especialmente conseguidos: o casal de protagonistas em silhueta numa janela em diferentes perspectivas e distâncias, realizado com uma sucessiva introdução de telões e cenários; o alucinante percurso de carro apresentado em sombra com um magnífico efeito de visualização da estrada; a cena final da cantora de cabaret; o encontro dos protagonistas num beco sob a luz de candeeiros de rua.
André Murraças opta por não estar visível, apenas se vê a mão que vai introduzindo objectos, cenários ou que vai fazendo subir e descer os vários telões.
E pouco importa se por vezes os cenários e os telões parecem um pouco toscos. Não causam qualquer distúrbio à magia deste espectáculo.

E acaba assim esta noite de cinema… ou de teatro de objectos e papel. Enquanto vamos para casa, vamos trauteando a banda sonora destas três peças (aliás, parabéns aos três pelas excelentes escolhas musicais) e vamos relembrando filmes que víamos nas matines televisivas de domingo.


De 0 a 10, nota 8.
Publicado na Rua de Baixo.

 Rio, rio, rio... © Cesc Martínez

 Divas' Haiku © Alípio Padilha

Teatro Noir © Cesc Martínez

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A véspera do dia final


Yael Ronen encenou esta produção da companhia Schaubüne, com actores alemães, palestinianos e israelistas, questionando o significado da fé e da religião como formas legítimas de identificação étnica. Ser de origem árabe, nascida na Alemanha, faz de mim muçulmana, questionava uma das personagens.

Com um sentido de humor muito certeiro, a encenadora coloca as personagens numa situação caricata quando estas descobrem que são mera ficção e que as palavras que brotam das suas bocas estão já traduzidas para português. Sente-se uma tensão entre as personagens para uma certa inevitabilidade, para o que acontece em cena e no mundo, nomeadamente para a morte de uma das personagens caso diga determinada frase… Obviamente a personagem, recusa-se. As novas tecnologias e o uso desmesurado que delas fazemos (a internet e a rápida propagação de notícias e boatos), também são habilmente atacadas. Muito interessante o momento em que os pais das personagens apareciam em cena através de uma webcam, questionando filhos e filhas se continuavam a fazer a peça com judeus, alemães, muçulmanos, protagonizando um claro momento de conflito de gerações sobre estas questões.

As 3 grandes religiões monoteístas estão constantemente na mira das várias personagens, com alguns comentários muitas vezes desconfortáveis. Mas o interessante é que durante quase duas horas a encenadora não toma uma posição. E isso é de louvar, porque difícil de conseguir enquanto seres humanos. Todas as verdades, dos cristãos, judeus ou muçulmanos são válidas. E ser-se ateu? Será uma experiência tão intensa como pertencer-se a uma religião? Não será uma verdade tão válida quanto as outras?

Aos poucos percebemos que há uma quarta força que se impôs no século XX e que galopa para os lugares cimeiros do século XXI. A economia, sobrepondo-se a tudo e todos. Ou será que não? Será que é apenas mais uma “religião”?

É um espectáculo inteligente, urgente, com muito sentido de humor, que nos deixa com um sorriso à saída da sala, mas que se mantém como assunto durante alguns dias.

A peça esteve em cena no Teatro D. Maria II, integrada no Festival de Almada.

De 0 a 10, nota 8.
Publicado na Rua de Baixo.


domingo, 8 de julho de 2012

Enquanto vivermos ou Enquanto vivermos podemos experimentar umas coisas!


“Enquanto vivermos” é um projecto de Pedro Gil, que partilha a criação e interpretação com Romeu Costa.

A acção passa-se em 1976, dois anos depois da revolução de Abril, entre bares, pensões, casas de banho, o palco e o vídeo. Ficcionaram uma realidade de uma geração diferente da sua (nasceram ambos na década de 80). Queriam um espectáculo performativo mas que contasse uma história. Acabou por resultar na história de dois homens, amantes, sem perspectivas de constituir família, com trabalhos, que vivem o dia a dia sem pensar no amanhã, sem qualquer vontade de serem politicamente activos. Há referências ao teatro “Ah Q” de Jean Jourdheuil e Bernard Chartreux, encenado por Luís Miguel Cintra e ao cinema “Império dos Sentidos” de Nagisa Oshima, marcos da década de 70. Há uma explosão de liberdade. Sobretudo de liberdade sexual.

A linguagem é crua e a acção explícita, muito in-yer-face theatre. Não deve ser a isto alheio o facto de ambos terem interpretado Shopping and Fucking de Mark Ravehill (Romeu Costa em duas encenações). Mas este é o primeiro deslize deste projecto: se o in-yer-face theatre era novidade e chocante na década de 90, hoje em dia é repetitivo e desnecessário (para não dizer mesmo aborrecido).

E pouco depois do início os criadores perdem o público (algumas pessoas não se coibiram de sair da sala). Estamos mais preocupados em tentar dar sentido ao que estamos a assistir do que a seguir o espectáculo. Quererão contar uma história? Quererão experimentar novas linguagens? De facto, segundo a folha de sala, Pedro Gil pretendia que este espectáculo estivesse na fronteira entre o teatro, a performance e o cinema. Mas acaba por não trazer nada de novo. Utilizar vídeo para contar parte da história não faz com que seja cinema. Percebo que queiram experimentar, mas talvez fosse interessante que vissem outros espectáculos e percebessem que aquilo que querem fazer como algo de novo e extraordinário é feito há décadas. O facto de o actor sair de cena e a acção continuar no vídeo, supostamente filmado no ensaio geral, não traz qualquer tensão ou relevância entre o que se passa no palco e o que se passa no vídeo. Vários poderiam ser os exemplos de espectáculo que utilizam esse recurso. No fim há uma referência a I.(esboço) de Miguel Loureiro que ambos interpretaram e que terá sido a primeira vez que trabalharam juntos. Mas afinal de contas, qual a relevância desse momento? Será esta peça auto-biográfica? A relação das personagens é afinal a relação entre os actores? Ou é essa a referência à performance que pretendiam trazer ao espectáculo?

O espaço cénico é modesto. Um plástico no chão que delimita a cena, duas cadeiras e alguns adereços que vão sendo utilizados para contar a história (um capacete, várias garrafas de água, dois baldes de água – os intérpretes passam o espectáculo a molharem-se um ao outro -, uma peruca, um par de sapatos de salto). Também pouco ou nada acrescenta à confusão do espectáculo. Por um lado, ainda bem!

Ao fim de duas horas saímos um pouco frustrados. Se a história acaba por se clara, não percebemos no entanto o que Pedro Gil quis com o espectáculo. Acaba por soar a pretensioso, tendo em conta o resultado pobre… É pena.

Ouvem-se alguns comentários aqui e ali: São bons actoresO que foi istoGira a cena em que o Pedro faz de mulherEra um pouco revista, nãoOnde vamos a seguir beber um copo?

Foi o que fiz. Fui beber um copo com os amigos e rapidamente a peça deixou de ser assunto.

O espectáculo é uma co-produção com a Culturgest, integrado no Festival de Almada.

De 0 a 10, nota 5.
Publicado na Rua de Baixo.


quarta-feira, 4 de julho de 2012

Curtas na Ribeira


Curtas 2012, Mostra de Teatro de Curta Duração é organizada pela companhia Primeiros Sintomas. Na primeira semana foram 5 as propostas apresentadas: Preto e Branco de António Mortágua e David Almeida, O Solene Resgate de Ricardo Neves-Neves, Terroristas #3 de Carlos Afonso Pereira, Miss Portugal de Anabela Brígida e Ex-Simbol de Leonor Cabral. Cada peça numa sala diferente, cada peça com uma duração diferente. Todas curtas. Umas mais que as outras.

Preto e Branco divide-se em dois momentos. Um primeiro a abrir as festividades, o segundo quase a fechar… discute-se a beleza da partida de xadrez (os intervenientes deixam escapar que eles gostam é de futebol), a beleza do movimento da partida de xadrez. É uma momento sui generis, que acaba por ser pouco memorável, algo a que assistimos (como diriam os jogadores de xadrez) en passant.

Passamos a O Solene Resgate. São mais os intervenientes do que os espectadores. Um coro, distribuído por cores conta-nos a história de uma princesa desaparecida e dos esforços para a reencontrar. O importante nesta peça é a utilização do coro, do todo, para o resultado final. Ricardo Neves-Neves dirige estes cerca de 30 elementos com um rigor matemático, que resulta numa interpretação harmoniosa, seja no texto dito em uníssono seja nos momentos musicais (aliás, fica na memória a canção final). É um exercício de forma muito bem conseguido (o texto, um tanto ou quanto non sense pouco acrescenta ao espectáculo).

Seguimos para uma sala pequena (diria mesmo pequena demais tendo em conta a quantidade de público). E de um espectáculo a 30 vozes passamos para Terroristas #3 de Carlos Afonso Pereira, um espectáculo a uma só voz, ou melhor, a um só silêncio. O encenador e intérprete optou por projectar as duas histórias (três se contarmos com a referência à Bíblia). O projecto iniciado em 2008 tem por base histórias de “terrorismo pessoal” como razão para o terrorismo global. A tensão criada pelo silêncio na sala é perturbadora. No final somos questionados: Já magoámos alguém ao ponto de nos poderem chamar terrorista? É uma proposta simples mas muito inteligente que dura 11 minutos e 9 segundos (a imagem final que vemos projectada no corpo do intérprete é 11:09, uma clara alusão ao 11 de Setembro).

Saímos em silêncio e dirigimo-nos para Miss Portugal de Anabela Brígida, que nos recebe com um sorriso na penumbra. O texto de André Murraças conta-nos as aventuras e desventuras de uma mulher que sonha com o concurso das Misses. A sua vida é mercada anualmente pelo concurso. Este foi talvez o momento mais teatral desta primeira semana. A encenação (de Anabela Brígida e Joaquim René) é subtil mas eficaz. No início só vemos o sapato da intérprete, que tem uma enorme borboleta, a borboleta que ela certamente quer ser. Pontualmente há disparos de flashes (lançados pela própria actriz) que iluminam poses tradicionais dos desfiles de Misses. Um vestido cor-de-rosa, uma tiara e um pequeno palco de rosas permitem a Anabela Brígida maravilhar-nos durante cerca de 15 minutos. Vai-nos fazendo sorrir e arranca-nos uma ou outra gargalhada. Delicioso e certeiro o momento final em que interpreta um playback de uma canção de uma outra Miss (americana).

Voltamos en passant pelo Preto e Branco e abrem-se as portas da rua para vermos Ex-Simbol de Leonor Cabral. A intérprete e criadora está num carro, à nossa frente. Quer que seja um momento de libertação, qual Thelma & Louise. Alguma imagens interessantes, mas pouco claras que não permite que se siga a peça com muita atenção. Talvez uma peça demasiado abstracta. De realçar, no entanto, a forma elegante com que Leonor lida com os imprevistos (pessoas que passam, o camião do lixo, carros que querem estacionar no seu lugar).

Preto e Branco - de 0 a 10, nota 4
O Solene Resgate - de 0 a 10, nota 7
Terroristas #3 - de 0 a 10, nota 7
Miss Portugal - de 0 a 10, nota 8
Ex-Simbol - de 0 a 10, nota 5
Publicado na Rua de Baixo.