segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Tróia

O teatromosca estreou recentemente a última peça da trilogia que dedicou ao trabalho de John Berger, depois de em 2002 ter apresentado Dog Art.
Com As três vidas de Lucie Cabrol (2010), Europa (2011) e Tróia (2011) a companhia procurou reflectir sobre a existência e a relação entre o mundo rural e o mundo urbano, o confronto entre estas duas realidades e o desaparecimento de uma por consequência da outra, talvez, como o encenador das três peças, Pedro Alves, diz na folha de sala da peça, referindo-se à trilogia “(…) um percurso extraordinariamente rico e simples (nada simplista) daquilo que pode ser tido como uma História do século XX europeu (…)”.

Em Europa, é o sonho que fala mais alto, o sonho da modernização, a ilusão da urbe. Esse sonho, essa ilusão é representada por uma mulher bonita que veio da cidade e que acaba por ser o objecto de desejo e da tragédia de Boris (o protagonista desta história). Actores e figurantes, reunidos à volta de uma mesa celebram o Dia dos Mortos, contam histórias, vivem histórias. A encenação de Pedro Alves é contida mas muito certeira, fruto de um trabalho de dramaturgia que o próprio encenador terá levado a cabo (a tradução do romance Once in Europe e adaptação para teatro é da sua autoria). O cenário de Pedro Silva é a segunda pérola deste espectáculo. Extremamente simples, o cenário mais do que ilustrativo é denunciador de um espaço, de um estado de espírito. Merecia um desenho de luz mais eficaz (da autoria de Carlos Arroja) que aproveitasse e fizesse sobressair o cenário e a encenação. Uma direcção de actores e interpretações mais cuidadas teriam ajudado a acompanhar um texto que salta entre o discurso na primeira pessoa, a narração e o diálogo. A presença da música no espectáculo acaba por ser um fait divers que pouco acrescenta.

Tróia é o resultado da adaptação de Lilac and Flag. A tradução e a adaptação são novamente da autoria do encenador, o que uma vez mais vem reforçar um trabalho de dramaturgia que se conflui com a própria encenação, oferecendo ao espectador uma leitura intensa e inteligente do espectáculo. Em Tróia o rural vê-se engolido pela urbe (por Tróia, essa cidade mítica, ou por Lisboa, Nova Iorque, Paris, Londres, Pequim), perdido, explorado, ansiando pelo regresso a uma realidade distante à qual provavelmente nunca conseguirá voltar. Procurando sobreviver numa existência que não é a sua, que não foi construída para eles, uma realidade que lhes escapa, Zsuzsa e Sucus entregam-se um ao outro, amam-se, destroem-se, reconstroem-se. Notável o trabalho do encenador Pedro Silva que polvilha o espaço com torres de (aparente) metal e vidro, frias, de uma estética impessoal, quase higiénica, que serve a encenação, complementando-a e enriquecendo-a sem se sobrepor. O desenho de luz, também de Carlos Arroja, é mais interessante que em Europa, salientando-se sobretudo na segunda parte do espectáculo. Os actores, Samuel Alves, Ana Gil e Mário Trigo são competentes na proposta que lhes é feita pelo encenador (com maior aplauso aos dois primeiros, com momentos muito bons na relação entre os dois – são eles Sucus e Zsuzsa respectivamente), saltando de registos de discurso directo, narrativo e diálogo. Um trabalho mais centrado na direcção de actores (mais na interpretação e menos na fisicalidade) poderia ter ajudado ao melhor acompanhamento do texto pelos espectadores. Uma nota menos positiva, diria mesmo, negativa para os figurinos. Se já em Europa se notava uma falta de cuidado nesta matéria, acabava por não ser um elemento perturbador, apenas não era relevante (embora de fraco sentido estético). Em Tróia, o figurino “de trazer por casa” impõe-se de uma forma negativa… demasiado forte para ser neutro, mas pouco trabalhado para que nos queira dizer algo… e enquanto procuramos significados de uma t-shirt ou de umas calças perdemos o fio à meada de um texto pouco fácil.


Europa – de 0 a 10, nota 6.
Tróia – de 0 a 10, nota 7.
teatromosca - de 0 a 10, nota 8.
Publicado na Rua de Baixo.

 fotografia Pedro Almeida

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Petra Von Kant e o T0 na Brandoa

Ao entrarmos na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II deparamo-nos com um bloco de madeira em cena. Percebemos que é articulado, que dali irá surgir o cenário. Ficamos curiosos… aos poucos Marlène | Diana Costa e Silva, assistente de Petra Von Kant | Custódia Gallego, vai desmontando o puzzle que é aquele bloco de madeira. Surge uma cama, um estirador, um armário, uma mesa, um banco… e o cenário fica com ar de T0, de uma habitação social algures para os lados da Brandoa, feio e acanhado. As actrizes tropeçam, dão encontrões nos adereços, limitam-se a um espaço mínimo de representação. Poderia funcionar para criar alguma tensão dramática mas…O cenário de Luísa Bebiano em nada retrata o ambiente de alta sociedade em que Petra Von Kant se movimenta (ou deveria movimentar). A originalidade e surpresa inicial do desmembramento do cenário perdem-se a partir do momento em que deixa de servir o espectáculo e passa verdadeiramente a toldá-lo. Na verdade, toda a componente plástica do espectáculo é má. Os figurinos de José António Tenente, em cetins, lantejoulas e transparências, são de um mau gosto indescritível e nada ajudam a elevar o nível social em que as personagens se movimentam (ou, repito, deveriam movimentar-se). As perucas também não ajudam… Passamos da Brandoa para a Damaia. Ninguém acredita que o confronto entre Petra e Karin | Inês Castel-Branco possa também passar por um conflito de classes, uma metáfora para um debate entre a velha e nova Alemanha.
A encenação de António Ferreira nada acrescenta a este texto. Na verdade não teria de o fazer, se se tivesse dedicado a uma boa direcção de actores. Às vezes, bons textos pedem apenas isso, que sejam bem dirigidos e bem interpretados. Sem subterfúgios. Mas ao ver este trabalho duvidamos que o tenha feito. E duvidamos que tenha percebido a peça. Nada na sua encenação é original, limitando-se a organizar entradas e saídas de cena. É penoso ver como as actrizes lutam com o cenário e o encenador a isso as submete. Justiça seja feita a Diana Costa e Silva cuja personagem sombria se movimenta silenciosamente em redor daquele espaço (se calhar teve a sorte de não ter de pular sobre a cama ou entrar para a zona da kitchenet).

E no meio deste desastre queremos que as actrizes salvem o espectáculo. Mas também não o fazem. C. Gallego não nos transmite a classe, a frieza, a arrogância e o drama que a personagem requer, mais preocupada em encontrar a piada e o gag fácil (aliás a sua personagem é digna de qualquer bêbeda numa tasca de Alfama). Inês Castel-Branco passa quase despercebida, nem fascinada pela figura de Petra, nem oportunista, nem anarca. Apenas desfila pelo palco. Sidónia | Paula Mora, amiga de Petra também não ajuda a compor o ramalhete. Os figurinos que a enchouriçam em cetins brilhantes transformam a sua personagem numa mulher vulgar (quase que sentimos, na cena em que apresenta Karin a Petra, que se trata da dona de um bordel a apresentar uma menina a uma cliente). Cláudia Carvalho | Gabriela Von Kant, filha de Petra, apresenta-se num figurino (uma vez mais o figurino!) tão pouco credível para uma filha adolescente, que qualquer esforço de representação que possa fazer é inválido. Restam Diana Costa e Silva, que compõe uma Marlene tensa, masoquista, subserviente, credível e até memorável e Isabel Ruth | Valéria Von Kant, mãe de Petra, cujo porte aristocrático nos transporta finalmente para um ambiente de alta sociedade, arrogante e preconceituoso que esperámos encontrar desde o início da peça (ainda que as botas e lenço leopardo me tenham arrepiado).

É francamente um mau espectáculo. E tendo em conta toda a polémica que rodeou este espectáculo e as trocas de palavras entre um suposto encenador afastado do projecto e o Director do Teatro Nacional, esperávamos encontrar um espectáculo brilhante, que fosse uma chapada de luva branca a todos os que se manifestaram contra a substituição. Mas o Director perdeu ao defender um encenador que transformou uma peça magnífica num momento de teatro constrangedor. Não sei se a outra versão seria melhor. Mas esta, sabemos que é má!

De 0 a 10 é um 2 (1 ponto para a Diana Costa e Silva e outro ponto para a Isabel Ruth).
Publicado na Rua de Baixo.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Forgive me but I’m in love with you!

Israel, a nova produção do Teatro Praga, é antes de mais uma provocação. Vamos com uma ideia pré-concebida, o título da peça a isso nos obriga, prontos a discordar e atacar o autor (Pedro Penim) se ele resolver dizer bem de Israel… Ao chegarmos ao Teatro Maria Matos somos recebidos com letras gigantes, iluminadas, na parede envidraçada do teatro, que formam a palavra Israel (estranhamente, a palavra lê-se da esquerda para a direita. Erro de produção ou intenção artística?). Tudo indica que vamos assistir a um hino a um pais que colhe tão poucas simpatias… e somos desarmados. Israel, de P. Penim, é uma declaração de amor. A um território, a uma pessoa, pouco importa. É de amor que se fala, de uma relação. Do que gostamos no outro, do que nos faz sentir bem no outro. E de repente pouco importa se é para alguém ou para um território que P. Penim fala através da webcam. Pouco importa se tudo é ficção ou se tudo é real. Uma vez por outra P. Penim entra no território da disputa “ (…) eu estou a lutar pela ideologia e não pelos factos (…)” e fá-lo de forma inteligente. Sem comprometer, sem comprometer-se. Porque não é para tomar uma posição que ele ali está. É sim para nos dizer que ama. Ama Israel. Com tudo de bom e de mau que o ser amado tem. E com a inevitabilidade do fim…

Israel, composto por 14 estações, tal como a Via Dolorosa, é um dos espectáculos mais generosos do Teatro Praga. Teriam sido dispensáveis alguns faits divers tão característicos do trabalho do Teatro Praga (ainda que alguns tenham funcionado bem e acrescentado algo ao espectáculo, como foi o caso da “máquina de fazer tremer”).

P. Penim (com a colaboração de Catarina Campino) expõe-se e oferece ao espectador 1h30 de emoção pura. Amar é bom. E não há que pedir desculpa por se amar assim.

De 0 a 10, é um emotivo 8.
Publicado na Rua de Baixo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

L'enfant Matrix

Num mundo simulado as máquinas manipulam , para sobreviverem, os corpos adormecidos do ser humano. Em Enfant, apresentado na Culturgest, Boris Charmatz coloca em confronto adultos e crianças. A procura de um movimento espontâneo, quase tosco, poder-se-ia mesmo dizer, infantil, faz-se de forma cruel. Os adultos/bailarinos manipulam o corpo das crianças como se de marionetas se tratassem. Puros objectos, inertes, de olhos fechados, que servem os propósitos e as vontades dos manipuladores. Crianças reféns dos adultos, sem opinião, frágeis, arrastados no chão, transportados de cabeça para baixo, agarrados apenas por uma perna. É um espectáculo incómodo. Vários fantasmas são invocados: a submissão, os abusos físicos, psíquicos e sexuais. Irónica, mas não inocente, a utilização da música Billie Jean de Michael Jackson. Discretos, mas eficazes, os figurinos pretos, simples, realçam a forma e beleza dos corpos, emoldurando a pele que aqui e ali se vai deixando ver. Aos poucos perguntava-me que direito tem este coreógrafo de utilizar o corpo das crianças para o seu trabalho? Ainda que esteticamente a leveza e doçura do corpo da criança em contraste com a rudez e força do corpo adulto seja... admirável. A criança é aqui utilizada como um meio para alcançar a vontade/visão do criador. Não existirão limites éticos na arte? Poderá a arte sobrepor-se à violência sobre aqueles corpos? O espectador será (deverá ser) um voyeur cúmplice e inerte?
No final, os bailarinos/adultos extenuados deixam-se vencer pelos corpos cheios de energia das crianças. Pouco a pouco, estas passam de manipulados a manipuladores, quase que como castigo. Agora vais sofrer nas minhas mãos o que eu sofri nas tuas. Senti quase como se fosse um pedido de desculpas (frouxo) do coreógrafo.
Não é uma peça unânime. Houve quem saísse, quem aplaudisse de pé, quem não aplaudisse, quem a louvasse desde logo, quem a odiasse na mesma medida. Para o bem e para o mal não será facilmente esquecida. Esta fronteira entre a instrumentalização das crianças e a denúncia dessa mesma instrumentalização não é fácil. Nem clara. E se calhar é aí que reside a relevância desta peça.

De 0 a 10 e surpreendendo a mim próprio, será um 7.
Publicado na Rua de Baixo.

Fotografia Boris Brussey

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

O inexplicável

É Meg Stuart que diz que a peça que agora apresenta no Teatro Maria Matos, Violet, é uma peça livre e inexplicável, aquela que considera a sua primeira peça abstracta.

Durante cerca de hora e meia, 5 bailarinos procuram energias, forças para construírem (segundo a folha de sala) esculturas cinéticas.

Passados 15 minutos do espectáculo, pergunto-me se esta é uma nova forma de pensar a dança? Se Meg Stuart quer enveredar por outro caminho, experimentar ou se pura e simplesmente estava pouco inspirada e obrigações contratuais a levaram a ter de estrear um espectáculo? À medida que os minutos passam (penosamente) inclino-me cada vez mais para a segunda opção… mas ainda assim procuro entender o transe que está a acontecer naquele palco. O som é ensurdecedor e os corpos em palco não procuram representar absolutamente nada, apenas são isso mesmo, um corpo, o foco da acção. E ali estão… a esbracejar, a mover-se, a caírem. Exaustos. Suados. Olho para a folha de sala uma e outra vez, a tentar encontrar uma pista… nada… ainda esboço um sorriso quando vejo na ficha artística que há uma cenógrafa (é uma parede preta gigante, que estar ali ou não estar…), uma figurinista (aquilo é roupa de trazer por casa) e alguém responsável pela dramaturgia… pelo quê???

E o espectáculo acaba. O público aplaudiu pouco entusiasta (há um ou outro que ainda grita e assobia)… Vou para o metro a pensar nos 18 euros que gastei no bilhete e que tão melhor teriam sido aplicados numa pizza no Lucca (afinal de contas ali tão perto).

De 0 a 10 é um penoso... 1 (em consideração por trabalhos anteriores da coreógrafa).
Publicado na Rua de Baixo.

Fotografia Chris Van der Burght

Mourir sur scène

Moi je veux mourir sur scène devant les projecteurs
Oui je veux mourir sur scène,
Le cœur ouvert tout en couleur
Mourir sans la moindre peine
Au dernier rendez-vous
Moi je veux mourir sur scène
En chantant jusqu'au bout.

Cândida Branca Flor não morreu no palco. Foi morrendo aos poucos. À medida que foi sendo esquecida pelo público, substituída por outras vozes, outros rostos, mais frescos, mais novos.

A peça “Cândida - Uma história portuguesa”, produção Cassefaz, em cena no Teatro Aberto, é um texto de homenagem à cantora, escrito por André Murraças. Mais do que uma biografia, é uma reflexão sobre a efemeridade da fama, a solidão do artista, a ilusão da vida de artista.

No início da peça, Cândida Branca Flor encontra-se na penumbra e conta-nos o que foi aquela noite. Acabara de acontecer o XIX Festival RTP da Canção. Cândida pariticipou com uma canção do seu amigo Carlos Paião. Ficou em segundo lugar. Não é inocentemente que digo que a Cândida Branca Flor está em cena, na penumbra e que nos conta esta história. Na verdade, por momentos sentimos um arrepio na espinha quando a actriz Sílvia Filipe entra em cena e começa este monólogo. É a Cândida Branca Flor que ali está. A voz, os gestos... é um trabalho brilhante de Sílvia Filipe. A acção passa para o camarim do Teatro Maria Matos nos momentos que antecederam a actuação da cantora. E com ela vivemos os nervos, as frustrações, as histórias, os hábitos, as superstições, a decoração do camarim (delicioso o momento em que retira da sua mala os retratos da santíssima trindade - Carlos Paião, Dalida e Beatriz Costa). Verdadeiro ou ficção, pouco importa.

O texto de André Murraças é uma vez mais inteligente. Distante das suas duas últimas peças "Sex Zombie - a vida de Veronica Lake" (Outubro 2010) e "Três Homens Sós" (Junho 2011), conseguimos ainda assim identificar o humor, a ironia e a elegância dos seus textos.

Apesar do desempenho de S. Filipe e do texto de A. Murraças, há alguma coisa que não funciona. A encenação, de A. Murraças e Paulo Filipe é insípida. Embora pintalgada com alguns momentos interessantes, não se pode dizer que no geral seja uma encenação interessante. Correcta, mas sem alma. E o mesmo se pode dizer do cenário e figurinos da autoria de A. Murraças. Eficazes, mas com uma notória falta de inspiração (a década de 80 potencia muito mais).

O final do espectáculo, uma vez mais "bravo ao texto", dá uma reviravolta que vem reforçar o carácter da ilusão da vida do artista, da fama.

Apesar dos desiquilíbrios, é uma sincera homenagem a Cândida Branca Flor. E a todas as Cândidas deste mundo.

De 0 a 10 é um bom 7.

Fotografia Mário Tavares

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Salieri ou uma ode à superficialidade

“Amadeus”, que estreou no TeatroNacional D. Maria II é a peça da rentrée. É dela que se fala há já alguns meses, relegando para segundo plano qualquer outra peça da saison teatral. Antes ainda de ter estreado criou um “diz que disse” à sua volta. Quando anunciada tinha Miguel Moreira no papel de Mozart, quando estreia tem afinal Ivo Canelas a interpretar o génio musical. Pequeno fait-divers que alimenta os “mexericos da Corte”. Para além de (quelle surprise) Ivo Canelas, o elenco reúne uma pequena constelação de actores: Carla Chambel, João Lagarto, Martinho Silva, José Neves, Luís Lucas, Manuel Coelho, Rogério Vieira e claro, o próprio Director do Teatro Nacional, Diogo Infante, no papel de Salieri. Às estrelas do elenco junta-se um encenador inglês, Tim Carrol (que já encenara A Tempestade de Willian Shakespeare em Portugal, mais precisamente no Teatro São Luiz), uma dupla de designers de moda para os figurinos, os Storytailors, o cenário de J. Ribeiro e o desenho de luz de Daniel Worm D’Assumpção. A peça de Peter Shaffer ganhou em 1981 o Tony Award para melhor peça e em 1984 a adaptação cinematográfica ganhou o Óscar de melhor filme. Tudo estava reunido para que este remake nacional de “Amadeus” fosse um acontecimento.

E é!

Mais ou menos…

“Amadeus” é uma ode à inveja, à vingança e à superficialidade. Sallieri, cego pelo talento e fama de Mozart, planeia vingar-se. Não de Mozart, mas de Deus! Salieri renega aquele a quem procurou servir através da sua música e utiliza Mozart como objecto para atingir o seu fim. Destruir Mozart serviria para dar uma lição a Deus.

O primeiro “incómodo” que se me levanta nesta produção é a tradução de Maria João da Rocha Afonso, por vezes demasiado literal, carecendo de uma adaptação para uma linguagem menos corriqueira. Expressões que em inglês funcionam e que denotam um certo humor, em português tornam-se facilmente revisteiras (na má acepção da palavra).

Depois a encenação… quase inexistente. Percebo que se queira dar todo o spotlight aos actores e nomeadamente a D. Infante, mas uma encenação não vive de entradas e saídas de cena e vira ora para a direita, ora para a esquerda e depois diz o texto. Bem, mas na verdade, quando Tim Carroll resolve ser criativo surge talvez o pior momento do espectáculo – a imagem de Salieri (D. Infante) irado contra Deus, de joelhos em frente a um pormenor d’ “A Criação de Adão” de Michelangelo é de arrepiar, de tão atroz que é. Por momentos, lembrei-me do falhanço total que foi a encenação de Tim Carrol de “A Tempestade” no Teatro São Luiz em 2004 (se a memória não me falha) e perguntei-me o que terá levado o Director Artístico do Teatro Nacional a convidar este senhor.

Os figurinos também deixam algo a desejar… se à primeira vista nos deixamos conquistar pelas criações da dupla Storytailors, aos poucos vamo-nos apercebendo que são uma mera tentativa de recriação da roupa da época e que os figurinos masculinos são todos iguais… mudam os tecidos e pequenas aplicações, mas o corte é o mesmo. Pobres ou ricos, o corte é o mesmo e os sapatos são iguais para todos. Interessante, sem ser genial, o figurino de Carla Chambel / Constanze. Escandalosa é a cópia da capa, chapéu e máscara que Salieri usa no final para atormentar Mozart: iguais ao filme de Milos Forman.

Salve-nos na equipa criativa o cenário de F. Ribeiro. O momento alto do espectáculo dá-se quando na apresentação da ópera encomendada pelo Imperador a Mozart se desvenda em palco, uma recriação da Sala Garret.

O desenho de luz de Daniel Worm D’Assumpção é eficaz, procurando num ou noutro momento adensar um momento dramático (sem grande êxito, mas por razões que lhe são alheias).

Finalmente o elenco… No cômputo geral é incomodativo o estilo afectado com que o elenco masculino se manifesta em cena. Sei que é um clichet e que é assim que são normalmente representados, mas a determinada altura parece exagerado…

Diogo Infante é Salieri na velhice e na juventude. A metamorfose de idades feita sem sair de cena é dos momentos mais interessantes do espectáculo. Sem grandes artifícios, D. Infante muda de timbre de voz, de postura, de figurino e peruca. Tudo muito rápido e eficaz. A voz de D. Infante impõe-se em todo o espectáculo pois é Salieri quem nos relata os acontecimentos. Mas a personagem acaba por ser pouco mais do que isso, uma voz. Uma voz bonita e bem colocada, mas desprovida de emoções…

Ivo Canelas compõe um Wolgang Amadeus Mozart infantil, palerma, frágil e naïf. Talvez um pouco irritante, mas que expressa de forma clara o espírito livre e genial da personagem.

No elenco há que destacar ainda, pela positiva, João Lagarto, um delicioso Imperador Joseph II (com a medida certa de “afectado”) e os Venticelli – José Neves e Martinho Silva.

Talvez as minhas expectativas fossem demasiado altas. Na verdade, o espectáculo vê-se bem, são quase duas horas e meia e não se dá pelo tempo a passar. É um bom momento de entretenimento. Mas um fraco momento criativo. Este “Amadeus” acabou por ser apenas uma ode… à superficialidade.

De 0 a 10 é um simpático 6.
Fotografia Pedro Macedo

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

domingo, 14 de agosto de 2011

Angèle e Tony

É o primeiro filme da relaizadora Alix Delaporte. É uma história romântica, o encontro entre uma jovem mulher amargurada pela vida (ex-prisioneira) e um pescador, típico homem bom, apreciado pela comunidade. Aos poucos, Angèle (uma interpretação brilhante de Clotilde Hesme) vai reaprendendo a sorrir e vai conseguindo arrancar dos espectadores um pequeno sorriso também. O filme poderia ser lamechas, mas consegue ficar na fronteira sem nunca a transpôr.
De salientar alguns planos magníficos sendo aquele que ainda me vagueia na memória o plano dos dois protagonistas no barco, em mar alto, em que vamos acompanhando a ondulação do mar (no trailer há um rápido vislumbre dessa cena aos 45 segundos).
De 0 a 10 é sem dúvida um 8.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Liberdade? Igualdade? Fraternidade?

Sempre que nos dirigimos à Casa Conveniente é certo que vamos viver uma experiência teatral única. Mónica Calle é uma das mais interessantes e inovadoras criadoras nacionais. Desde “A virgem doida” (se a memória não me falha em 1992), somos surpreendidos, provocados, estimulados. Se há alguém a quem o rótulo da experimentação se possa colar sem problemas (e com selo acrescido de qualidade) esse alguém é Mónica Calle.

E “Recordações de uma Revolução” a partir de “A Missão – Memórias de uma revolução” de Heiner Müller é um verdadeiro exemplo do talento de M. Calle. 

Em cena juntam-se à encenadora Mário Fernandes e René Vidal, para distribuírem entre si os papéis de Debuísson, Galloudec e Sasportas, três emissários da Convenção Francesa responsáveis por organizar uma revolta de escravos na Jamaica contra a soberania da coroa britânica em nome dos valores da nova República de França. 

Os três intérpretes dão corpo a uma história de opressão e traição, que poderia ser a nossa história, portuguesa, recente, sangrada em território africano. Ou a história dos dois intérpretes masculinos que até há pouco tempo viviam num estabelecimento prisional. Mas M. Calle não se fecha na portugalidade nem na particularidade. Afinal, opressão e traição são pertença universal.

R.Vidal é (como M. Calle) um actor muito intenso e físico. Por momentos, na penumbra do pequeno espaço da Casa Conveniente o seu olhar trespassa-nos. Sentimos que nos analisa, que procura saber qual de nós também o irá trair. Por contraponto, M. Fernandes é fechado sobre sim mesmo, impondo-se no espaço deforma serena e discreta. Mas também ele nos olha, também ele nos analisa. E Calle (e a sua magnífica voz) enchem a cena sempre que necessário e desaparece num ápice, oferecendo o protagonismo aos outros intérpretes.

Plasticamente é sem dúvida nenhuma um dos mais bonitos espectáculos que vi na Casa Conveniente. Algumas caixas, duas paredes compostas por ventoinhas, baldes, terra, água e um desenho de luz inteligente são suficientes para criar espaços, ambientes e ilusões, de forma assaz discreta para não tirar lugar de destaque ao texto.

Uma última nota para a participação de Amândio Pinheiro que no quase no final do espectáculo nos brinda com pequeno (mas vibrante) monólogo.

O espectáculo começa com um abraço. E é assim que o espectador se sente ao sair desta peça. Abraçado pelo teatro de Mónica Calle.

De 0 a 10, é um aplaudido 9.
Publicado na Rua de Baixo.

fotografia Bruno Simão

quarta-feira, 27 de julho de 2011

3 pequenas formas, 3 grandes espectáculos

Na sequência de um workshop ministrado pela belga Agnès LimbosA TARUMBA – Teatro de Marionetas, que todos os anos organiza um dos mais interessantes festivais da capital, o FIMFA, lançou o desafio a 3 criadores para apresentarem um espectáculo  de pequenas formas com estreia marcada para o Festival. Luís Hipólito, Joaquim René e Ana Gabriel aceitaram e criaram, respectivamente, “Oh! Please!”, “Un hombre al borde de un ataque de nervios” e “Ego ísmo”. Os espectáculos, apresentados num todo sob a égide do Projecto Embrião, foram um sucesso durante o festival e voltam a estar em cena neste final de Julho.
“Oh! Please” de Luís Hipólito é uma muita divertida abordagem à nossa relação com o Amor, ontem, hoje e amanhã. O Amor aos olhos da Religião, o Amor aos olhos da Lei, o Amor aos olhos da Sociedade. E para cada um dos quadros L. Hipólito utiliza objectos muito específicos, com dimensões e técnicas de manipulação distintas. A própria presença do criador é distinta: no primeiro quadro o intérprete quase que se anula a si próprio, deixando o protagonismo para os objectos (onde se destacam duas fabulosas mãos de manequins, uma feminina e uma masculina) e nos dois quadros seguintes divide a cena com os objectos (corpos de manequins no segundo e uma série de interessantes bonecas no terceiro). Cada quadro é pontuado com uma deliciosa e surpreendente banda sonora.
Saímos deste primeiro espectáculo com um sorriso nos lábios e dirigimo-nos a uma segunda sala.
Entramos no mundo de “Un hombre al borde de un ataque de nervios” de Joaquim René. Avisam-nos que qualquer coincidência com a ficção não é pura coincidência. E quem conhece a obra de Pedro Almodóvar reconhece uma série de referências. O telefone vermelho, o gaspacho, a banda sonora, o fogo, a tensão, o tom melodramático, tudo isso ali está. Mas J. René vai além disso e cria um espectáculo sobre o fim, o fim do amor, o fim de uma relação. Pouco importa a história que terá vivido, o que nos apercebemos ali é de um fim. Um fim trágico, um fim intenso, um fim que nos leva ao limite. Contrariamente a L. Hipólito, J. René opta por ser uma presença constante e é da sua relação com vários objectos (e sobretudo da relação com o telefone) que vive o espectáculo. Uma última nota para as frases que surgem de forma muito poética quase no final do espectáculo.

É com o coração nas mãos que nos dirigimos para a terceira sala (na verdade,regressamos à primeira).

O universo de Ana Gabriel é de “Ego ísmo”, uma dura crítica ao “amor exclusivo à pessoa e aos seus interesses próprios”. Uma vez mais o Amor. De forma diferente, mas ainda assim o Amor. Ou neste caso, a falta dele. A falta de Amo rpara com o mundo que nos rodeia, para com a Natureza. De um mundo idílico passamos pouco a pouco para um mundo árido, vazio, triste. É o corpo da intérprete que traz intensidade a esta alteração que se vai processando, pouco a pouco, ano a ano, século a século. Aliás, a presença do corpo da intérprete é uma vez mais diferente das presenças propostas pelos dois intérpretes anteriores. Aqui é o corpo, o movimento que cria no objecto uma intensidade, uma história que este em si não tem. Quase no final a banda sonora e a ausência de acção criam no espectador um certo incómodo (talvez resultado de uma pequena culpa que se vai instalando ao vermos o espectáculo).
3 propostas distintas, ainda assim próximas, resultado de abordagens possíveis ao teatro de objectos, que nos deixam com vontade de ver mais.

De 0 a 10 é certamente um 8.
Publicado na Rua de Baixo.

 Oh! Please! de Luís Hipólito
fotografia Inês Garcia

 Ego ísmo de Ana Gabriel
fotografia Inês Garcia

Un hombre al borde de un ataque de nervios de Joaquim René
fotografia LV